sexta-feira, 3 de junho de 2011

A luta de Jacó

O papa Bento XVI conduz semanalmente, durante a oração do Ângelus (ou do Regina Coeli, durante o tempo pascal), um momento de catequese. O tema desses ensinamentos é oração.
Queridos irmãos e irmãs
Hoje, eu gostaria de refletir convosco sobre um texto do Livro do Gênesis que narra um episódio um pouco especial da história do patriarca Jacó. É um fragmento de difícil interpretação, mas importante na nossa vida de fé e de oração: trata-se do relato da luta com Deus no vau de Jaboc, do qual ouvimos um pedaço.
Como recordareis, Jacó tinha tirado do seu irmão Esaú a primogenitura, em troca de um prato de lentilhas, e depois recebeu de maneira enganosa a bênção do seu pai Isaac, que nesse momento era muito idoso, aproveitando-se da sua cegueira. Fugindo da ira de Esaú, refugiou-se na casa de um parente, Labão; tinha se casado, havia enriquecido e voltava à sua terra natal, disposto a enfrentar o seu irmão, depois de ter tomado algumas prudentes medidas. Mas quando tudo está preparado para este encontro, depois de ter feito que os que estavam com ele atravessassem o vau que delimitava o território de Esaú, Jacó fica sozinho e é agredido por um desconhecido, com quem luta a noite inteira. Esta luta corpo a corpo – que encontramos no capítulo 32 do Livro do Gênesis – se converte para ele em uma singular experiência de Deus.
A noite é o momento favorável para agir escondido; é o tempo oportuno, portanto, para Jacó, de entrar no território do irmão sem ser visto e talvez com a ilusão de pegar Esaú de surpresa. No entanto, é ele quem é surpreendido por um ataque imprevisto, para o qual não estava preparado. Havia usado sua astúcia para tentar evitar uma situação perigosa, acreditava ter tudo sob controle e, no entanto, encontra-se agora tendo de enfrentar uma luta misteriosa que o surpreende em solidão e sem dar-lhe a oportunidade de organizar uma defesa adequada. Indefeso, à noite, o patriarca Jacó luta contra alguém. O texto não especifica a identidade do agressor; usa um termo hebraico que indica “um homem” de maneira genérica, “um, alguém”; trata-se de uma definição vaga, indeterminada, que quer manter o assaltante no mistério. Está escuro, Jacó não consegue distinguir seu adversário, e também para nós permanece o mistério; alguém enfrenta o patriarca e este é o único dado seguro que nos dá o narrador. Somente no final, quando a luta já terminou e esse “alguém” desapareceu, só então Jacó o nomeará e poderá dizer que lutou contra Deus.
O episódio se desenvolve na escuridão e é difícil perceber não só a identidade do assaltante de Jacó, senão também como se deu a luta. Lendo o texto, é difícil estabelecer qual dos dois adversários está ganhando; os verbos são usados frequentemente sem um sujeito explícito e as ações acontecem quase de forma contraditória; então, quando parece que um dos dois vai prevalecer, a ação seguinte desmente isso imediatamente e apresenta o outro como vencedor. No começo, de fato, Jacó parece ser o mais forte, e o adversário – diz o texto - “não podia vencê-lo” (v. 26); finalmente, atinge Jacó no fêmur, provocando-lhe um deslocamento. Poderíamos pensar que Jacó sucumbe; no entanto, é o outro que lhe pede que o deixe partir; mas o patriarca se nega, impondo uma condição: “não te largarei, se não me abençoares” (v. 27). Aquele que de maneira enganosa havia roubado do seu irmão a bênção do primogênito agora a quer de um desconhecido, de quem talvez começa a perceber as conotações divinas, sem poder reconhecê-lo verdadeiramente.
O rival, que parece estar retido e portanto, derrotado por Jacó, ao invés de ceder à petição do patriarca, pergunta seu nome: “Qual é o teu nome?”. O patriarca lhe responde: “Jacó” (v. 28). Aqui a luta dá um giro importante. Conhecer o nome de alguém implica em uma espécie de poder sobre a pessoa, porque o nome, na mentalidade bíblica, contém a realidade mais profunda do indivíduo, desvela o segredo e o destino. Conhecer o nome de alguém quer dizer conhecer a verdade sobre o outro e isso permite poder dominá-lo. Quanto, portanto, por petição do desconhecido, Jacó revela seu nome, está se colocando nas mãos do seu adversário, é uma forma de render-se, de entregar-se totalmente ao outro.
Mas, nesse gesto de rendição, Jacó também acaba sendo vencedor, paradoxalmente, porque recebe um nome novo, junto ao reconhecimento de vitória por parte do seu adversário, que lhe diz: “Doravante não te chamarás Jacó, mas Israel, porque lutaste com Deus e com homens, e venceste” (v. 29). “Jacó” era um nome que recordava a origem problemática do patriarca; em hebraico, de fato, recorda o termo “calcanhar” e remete o leitor ao momento do nascimento de Jacó, quando, saindo do ventre materno, agarra o calcanhar do seu irmão gêmeo (Gn 25, 26), quase pressagiando o dano que realiza ao seu irmão na idade adulta. Mas o nome de Jacó recorda também o verbo “enganar, suplantar”. E agora, na luta, o patriarca revela ao seu oponente, em um gesto de rendição e doação, sua própria realidade de quem engana, quem suplanta; mas o outro, que é Deus, transforma esta realidade negativa em positiva: Jacó, o defraudador, se converte em Israel; é-lhe dado um nome novo que lhe confere uma nova identidade. Mas também aqui o relato mantém sua duplicidade, porque o significado mais provável de Israel é “Deus forte, Deus vence”.
Portanto, Jacó prevaleceu, venceu – é o próprio adversário quem afirma isso -, mas sua nova identidade, recebida do próprio adversário, afirma e testemunha a vitória de Deus. E quando Jacó pergunta, por sua vez, o nome do seu oponente, este não quer dizer-lhe, mas o revela em um gesto inequívoco, dando-lhe sua bênção. Esta bênção que o patriarca havia lhe pedido no começo da luta lhe é concedida agora. E não é uma bênção obtida mediante engano, mas gratuitamente concedida por Deus, que Jacó pode receber porque está sozinho, sem proteção, sem astúcias nem enganos; entrega-se indefeso, aceita a rendição e confessa a verdade sobre si mesmo. Por isso, no final da luta, recebida a bênção, o patriarca pode finalmente reconhecer o outro, o Deus da bênção: “Vi Deus face a face e minha vida foi poupada” (v. 31); agora pode atravessar o vau, carregando um nome novo, mas “vencido” por Deus e marcado para sempre, mancando devido ao ferimento recebido.
As explicações que a exegese bíblica oferece com relação a este fragmento são muitas; em particular, os estudiosos reconhecem aqui tentativas e componentes literários de vários tipos, como também referências a algum conto popular. Mas quando estes elementos são assumidos pelos autores sagrados e englobados no relato bíblico, mudam de significado e o texto se abre a dimensões mais amplas. O episódio da luta no Jaboc se mostra ao crente como texto paradigmático no qual o povo de Israel fala da sua própria origem e delineia os traços de uma relação especial entre Deus e o homem. Por isso, como se afirma também no Catecismo da Igreja Católica, “atradição espiritual da Igreja divisou nesta narrativa o símbolo da oração como combate da fé e vitória da perseverança” (n. 2573). O texto bíblico nos fala da longa noite da busca de Deus, da luta para conhecer o nome e ver seu rosto; é a noite da oração que, com tenacidade e perseverança, pede a Deus a bênção e um nome novo, uma nova realidade, fruto da conversão e do perdão.
A noite de Jacó no vau de Jaboc se converte, assim, para o crente, em um ponto de referência para entender a relação com Deus que, na oração, encontra sua máxima expressão. A oração exige confiança, proximidade, quase um corpo a corpo simbólico, não com um Deus adversário e inimigo, mas com um Senhor que abençoa e que permanece sempre misterioso, que aparece como inalcançável.
Por isso,o autor sacro utiliza o símbolo da luta, que envolve força de ânimo, perseverança, tenacidade em alcançar o que se deseja. E se o objeto do desejo é a relação com Deus, sua bênção e seu amor, então a luta só pode culminar no dom de si mesmo a Deus, no reconhecimento da própria fraqueza, que vence quando consegue abandonar-se nas mãos misericordiosas de Deus.
Queridos irmãos e irmãs, toda a nossa vida é como esta longa noite de luta e de oração, de consumar no desejo e na petição de uma bênção de Deus que não pode ser arrancada ou conseguida somente com as nossas forças, mas que deve ser recebida com humildade d'Ele, como dom gratuito que permite, finalmente, reconhecer o rosto de Deus. E mais ainda: Jacó, que recebe um nome novo e se converte em Israel, também dá ao lugar um nome novo, onde lutou com Deus, rezou-lhe; nomeia-o Fanuel, que significa “rosto de Deus”. Com esse nome, ele reconhece que o lugar está cheio da presença do Senhor; santifica essa terra, dando-lhe o selo daquele misterioso encontro com Deus. Aquele que se deixa abençoar por Deus, abandona-se n'Ele, deixa-se transformar por Ele, torna o mundo abençoado. Que o Senhor nos ajude a combater a boa batalha da fé (cf. 1Tm 6,12; 2Tm 4,7) e a pedir, na nossa oração, a sua bênção, para que nos renove na espera de ver seu rosto.
Obrigado!
No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em vários idiomas. Em português, disse:
Queridos irmãos e irmãs
Hoje gostaria de refletir sobre um texto do Livro de Gênesis: a luta noturna do Patriarca Jacó com Deus. Jacó havia usurpado a primogenitura do seu irmão Esaú e obtivera, por meio de engano, a bênção de seu pai Isaac indo depois refugiar-se junto do seu tio Labão. Ao voltar para a sua pátria improvisadamente é atacado, de noite, por um estranho. Ao cabo de uma fatigosa luta “corpo-a-corpo” com este personagem misterioso, que aos poucos vai revelando a sua natureza divina, Jacó, cujo nome derivava do verbo hebraico que significa “enganar, suplantar”, recebe um novo nome que lhe vem de Deus: passa a se chamar Israel, que significa “Deus é forte, Deus vence”. A Tradição espiritual da Igreja interpretou esse episódio como um símbolo da oração como combate da fé e da vitória da perseverança. Realmente, a oração exige confiança e intimidade, quase um corpo-a-corpo simbólico, não com um Deus adversário, mas com o Senhor que abençoa e que permanece misterioso. De fato, toda nossa vida é como esta longa noite de luta e de oração: para receber com humildade a bênção que nos transforma e que nos permite reconhecer a face de Deus.
Queridos peregrinos vindos de Portugal e do Brasil, nomeadamente da paróquia de Itú, agradeço a vossa presença e quanto a mesma significa de confissão de fé e amor a Deus. Procurai sempre na oração o auxílio do Senhor para combater a boa batalha da fé. De coração, a todos abençôo. Ide com Deus!

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A oração intercessora de Abraão ( Pelo Papa Bento XVI )

O papa Bento XVI conduz semanalmente, durante a oração do Ângelus (ou do Regina Coeli, durante o tempo pascal), um momento de catequese. O tema desses ensinamentos é oração.
Queridos irmãos e irmãs
Nas duas últimas catequeses, refletimos sobre a oração como fenômeno universal, que - inclusive de diversas formas - está presente nas culturas de todas as épocas. Hoje, no entanto, eu gostaria de começar um percurso bíblico sobre este tema, que nos conduzirá a aprofundar no diálogo de aliança entre Deus e o homem, presente na história da salvação, até o seu cume, a Palavra definitiva que é Jesus Cristo. Este caminho nos fará deter-nos em alguns textos importantes e figuras paradigmáticas do Antigo e do Novo Testamentos. Será Abraão, o grande patriarca, pai de todos os crentes (cf. Rm 4,11-12.16-17), quem nos oferecerá o primeiro exemplo de oração, no episódio de intercessão pela cidade de Sodoma e Gomorra. E eu gostaria de vos convidar a aproveitar este percurso que faremos nas próximas catequeses para aprender a conhecer melhor a Bíblia, que espero que tenhais em vossas casas; e, durante a semana, podeis lê-la e meditá-la na oração, para conhecer a maravilhosa história da relação entre Deus e o homem, entre o Deus que se comunica conosco e o homem que responde, que reza.
O primeiro texto sobre o qual refletiremos se encontra no capítulo 18 do livro do Gênesis; conta-se que a maldade dos habitantes de Sodoma e Gomorra estava chegando ao seu limite, tanto que se fez necessária uma intervenção de Deus para realizar um grande ato de justiça e frear o mal, destruindo aquelas cidades. Aqui intervém Abraão, com sua oração de intercessão. Deus decide revelar-lhe o que vai lhe acontecer e lhe faz conhecer a gravidade do mal e suas terríveis consequências, porque Abraão é seu escolhido, escolhido para construir um grande povo e fazer que o mundo inteiro alcance a bênção divina. A sua é uma missão de salvação, que deve responder ao pecado que invadiu a realidade do homem; através dele, o Senhor quer levar a humanidade à fé, à obediência, à justiça. E então, este amigo de Deus se abre à realidade e às necessidades do mundo, reza pelos que estão a ponto de ser castigados e pede que sejam salvos.
Abraão enfrenta, logo depois, o problema em toda a sua gravidade e diz ao Senhor: "Vais realmente exterminar o justo com o ímpio? Se houvesse cinquenta justos na cidade, acaso os exterminarias? Não perdoarias o lugar por causa dos cinquenta justos que ali vivem? Longe de ti proceder assim, fazendo morrer o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio! Longe de ti! O juiz de toda a terra não faria justiça?" (vv. 23-25). Com estas palavras, com grande coragem, Abraão apresenta a Deus a necessidade de evitar a justiça sumária: se a cidade é culpada, é justo condenar e infligir a pena, mas - afirma o grande patriarca - seria injusto castigar de modo indiscriminado todos os habitantes. Se na cidade há inocentes, estes não podem ser tratados como culpados. Deus, que é um juiz justo, não pode agir assim, diz Abraão, justamente, a Deus.
Ao lermos mais atentamente o texto, percebemos que a petição de Abraão é ainda mais séria e profunda, porque não se limita a pedir a salvação para os inocentes. Abraão pede o perdão para toda a cidade e o faz apelando à justiça de Deus. Ele diz, de fato, ao Senhor: "Não perdoarias o lugar por causa dos cinquenta justos que ali vivem?" (v. 24b). Dessa maneira, coloca em jogo uma nova ideia de justiça: não a que se limita a castigar os culpados, como os homens fazem, mas uma justiça diferente, que busca o bem e o cria através do perdão que transforma o pecador, converte-o e o salva. Com a sua oração, portanto, Abraão não invoca uma justiça meramente retributiva, mas uma intervenção de salvação que, levando em conta os inocentes, liberta da culpa também os ímpios, perdoando-os. O pensamento de Abraão, que parece quase paradoxal, poderia se resumir assim: obviamente, não se pode tratar os inocentes como os culpados, isso seria injusto; é necessário, no entanto, tratar os culpados como os inocentes, realizando um ato de justiça "superior", oferecendo-lhes uma possibilidade de salvação, porque, se os malfeitores aceitam o perdão de Deus e confessam sua culpa, deixando-se salvar, não continuarão fazendo o mal; eles se converterão também em justos, sem necessitar jamais ser castigados.
É esta a petição de justiça que Abraão expressa em sua intercessão, uma petição que se baseia na certeza de que o Senhor é misericordioso. Abraão não pede a Deus uma coisa contrária à sua essência; ele bate à porta do coração de Deus conhecendo sua verdadeira vontade. Já que Sodoma é uma grande cidade, cinquenta justos parecem pouca coisa, mas a justiça de Deus e seu perdão não são talvez a manifestação da força do bem, ainda que este pareça menor e mais fraco que o mal? A destruição de Sodoma deveria frear o mal presente na cidade, mas Abraão sabe que Deus tem outras maneiras e meios para frear a difusão do mal. É o perdão que interrompe a espiral do pecado e Abraão, em seu diálogo com Deus, apela exatamente a isso. E quando o Senhor aceita perdoar a cidade se encontrar nela cinquenta justos, sua oração de intercessão começa a descer aos abismos da misericórdia divina. Abraão - como recordamos - diminui progressivamente o número dos inocentes necessários para a salvação; se não forem cinquenta, poderiam ser quarenta e cinco, e assim por diante, até chegar a dez, continuando com a sua súplica, que se torna audaz na insistência: "E se forem só quarenta... trinta... vinte... dez?" (cf. v. 29. 30. 31. 32). E, quanto menor é o número, maior se revela e se manifesta a misericórdia de Deus, que escuta com paciência a oração, acolhe-a e repete depois de cada súplica: "Perdoarei... Não a destruirei... Não o farei" (cf. v. 26. 28. 29. 30. 31. 32).
Assim, pela intercessão de Abraão, Sodoma poderá ser salva, se nela se encontrarem apenas dez inocentes. Este é o poder da oração. Porque, através da intercessão, da oração a Deus pela salvação dos outros, se manifesta e se expressa o desejo de salvação que Deus tem sempre com relação ao pecador. O mal, de fato, não pode ser aceito, deve ser apontado e destruído através do castigo: a destruição de Sodoma tinha esta intenção. Mas o Senhor não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva (cf. Ez 18,23; 33,11); seu desejo é perdoar sempre, salvar, dar a vida, transformar o mal em bem. E este é o desejo divino que, na oração, se torna também desejo do homem e se expressa por meio das palavras de intercessão. Com sua súplica, Abraão está emprestando sua voz, mas também seu coração à vontade divina: o desejo de Deus é misericórdia, amor e vontade de salvação, e este desejo de Deus encontrou em Abraão e na sua oração a possibilidade de manifestar-se de maneira concreta na história dos homens, para estar presente onde há necessidade de graça. Com a voz da sua oração, Abraão está dando voz ao desejo de Deus, que não é o de destruir, mas o de salvar Sodoma, dar vida ao pecador convertido.
Isso é o que o Senhor quer, e seu diálogo com Abraão é uma prolongada e inequívoca manifestação do seu amor misericordioso. A necessidade de encontrar homens justos na cidade se converte cada vez mais em menos exigente e, no final, bastam dez para salvar a totalidade da população. Por que motivo Abraão se deteve em dez, o texto não diz. Talvez seja um número que indica um núcleo comunitário mínimo (ainda hoje, dez pessoas constituem oquorum necessário para a oração hebraica). De qualquer forma, trata-se de um número exíguo, uma pequena parcela do bem para salvar um grande mal. Mas nem sequer dez justos se encontravam em Sodoma e Gomorra e as cidades foram destruídas - uma destruição paradoxalmente necessária para a oração de intercessão de Abraão. Porque precisamente essa oração revelou a vontade salvífica de Deus: o Senhor estava disposto a perdoar, desejava fazê-lo, mas as cidades estavam fechadas em um mal total e paralisante, sem ter nem ao menos alguns poucos inocentes a partir dos quais começar a transformar o mal em bem.
Porque é este o caminho de salvação que também Abraão pedia: ser salvos não quer dizer simplesmente escapar do castigo, mas ser libertados do mal que nos habita. Não é o castigo que deve ser eliminado, mas o pecado, essa rejeição de Deus e do amor que leva em si o castigo. Dirá o profeta Jeremias ao povo rebelde: "Teu crime te castigue, tua infidelidade sirva para tua correção! Reconhece e vê como é ruim e amargo teres abandonado o Senhor, teu Deus" (Jer 2,19). É dessa tristeza e amargura que Deus quer salvar o homem, libertando-o do pecado. Mas é necessária uma transformação a partir do interior, uma gota de bem, um começo do qual partir para transformar o mal em bem, o ódio em amor, a vingança em perdão. Por isso, os justos tinham que estar dentro da cidade e Abraão continuamente repete: "Talvez lá haja...", "lá": é dentro da realidade doente que deve estar esse gérmen de bem que pode curar e devolver a vida. É uma palavra dirigida também a nós: que em nossas cidades haja um gérmen de bem; que façamos o necessário para que não sejam apenas dez justos, para conseguir realmente fazer que nossas cidades vivam e sobrevivam, para salvá-las dessa amargura interior que é a ausência de Deus. E, na realidade doente de Sodoma e Gomorra, aquele gérmen de bem não estava presente.
Mas a misericórdia de Deus na história do seu povo se amplia mais tarde. Se para salvar Sodoma eram necessários dez justos, o profeta Jeremias dirá, em nome do Onipotente, que basta somente um justo para salvar Jerusalém: "Percorrei as ruas de Jerusalém, olhai, descobri, procurai também nas praças, se há alguém que pratique o direito, alguém que busque a sinceridade, para que, então, eu perdoe a cidade" (Jer 5,1). O número diminuiu mais ainda, a bondade de Deus se mostra ainda maior. E nem sequer isso basta, a sobreabundante misericórdia de Deus não encontra a resposta do bem que busca e Jerusalém cai sob o assédio dos inimigos. Será necessário que Deus se converta nesse justo. E este é o mistério da Encarnação: para garantir um justo, Ele mesmo se faz homem. O justo estará sempre presente, porque é Ele: é necessário que o próprio Deus se converta nesse justo. O infinito e surpreendente amor divino é manifestado em sua plenitude quando o Filho de Deus se faz Homem, o Justo definitivo, o perfeito Inocente, que levará a salvação ao mundo inteiro morrendo na cruz, perdoando e intercedendo por aqueles que "não sabem o que fazem" (Lc 23,34). Então, a oração de todo homem encontrará resposta; então, todas as nossas intercessões serão plenamente escutadas.
Queridos irmãos e irmãs, a súplica de Abraão, nosso pai na fé, nos ensina a abrir cada vez mais o coração à misericórdia sobreabundante de Deus, para que, na oração cotidiana, saibamos desejar a salvação da humanidade e pedi-la com perseverança e confiança ao Senhor, que é grande no amor.
Obrigado!
No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em vários idiomas. Em português, disse:
Queridos irmãos e irmãs
Figura paradigmática do homem em oração é Abraão, que intercede junto de Deus pela salvação das cidades de Sodoma e Gomorra. Não pede apenas uma justiça retributiva, mas uma intervenção salvadora de Deus que, tendo em conta os inocentes, livre da culpa os ímpios. Tratar os inocentes como os culpados seria injusto, obviamente; o que Abraão pede é que os culpados sejam tratados como os inocentes, realizando Deus uma justiça «superior», isto é, oferecendo-lhes uma possibilidade de salvação, porque se eles aceitarem o perdão de Deus e confessarem a culpa deixando-se salvar, cessarão de fazer o mal e tornar-se-ão também eles justos, que já não necessitam de punição. É certo que a destruição da cidade punha fim ao mal que nela havia, mas Abraão sabe que Deus tem outros modos e outros meios para deter a difusão do mal: é o perdão. Este interrompe a espiral do pecado. É isto mesmo que Abraão pede no seu diálogo com Deus.
Uma saudação amiga para os fiéis da paróquia da Covilhã e da diocese de Maringá, para os Irmãos Maristas da província Brasil Centro-Sul e demais peregrinos de língua portuguesa! Convido-vos a aproveitar o percurso que faremos nas próximas catequeses para conhecer melhor a Bíblia, que tendes - penso eu - em casa. Durante a semana, parai um pouco a lê-la e meditá-la na oração para aprenderdes a história maravilhosa da relação entre Deus e o homem: Deus que Se comunica a nós, e nós que Lhe respondemos rezando. Sereis assim uma bênção no meio dos vossos irmãos, como foi Abraão. A Virgem Mãe vos guie e proteja!